Dois Aspectos da Assembleia
O uso da palavra “assembleia”
também tem confundido alguns. A Bíblia usa a palavra aplicada aos Cristãos de
duas maneiras – para descrever a Igreja em seus aspectos universal e local.
Ela também é usada em conexão com Israel e com os pagãos – Atos 7:38, 19:32,
mas isso não tem relação com nosso assunto, pois estamos tratando de sua
aplicação a Cristãos. Digno de nota é que a Escritura se refere ao aspecto
local da assembleia com muito maior frequência (cerca de 90 vezes) do que ao
seu aspecto universal (cerca de 20 vezes).
Quando o assunto é o
aspecto universal da assembleia, ele diz respeito a todo verdadeiro Cristão
(Mt 16:18; Ef 1:22, 5:25 etc.). Trata-se de algo de que todos os Cristãos fazem
parte como resultado de sua fé e da obra consumada de Cristo, e o consequente
selo do Espírito Santo. Isso é verdadeiro independentemente de onde estejam
esses Cristãos, de qual seja seu estado de espírito, ou de quando eles tenham
vivido entre o dia de Pentecostes e o Arrebatamento. Aqueles que compõem este
aspecto da assembleia possuem um lugar firme e eterno de bênção com Cristo.
Enquanto o aspecto
universal da assembleia tem a ver com a posição firme de bênção que todos os Cristãos
possuem por estarem unidos a Cristo, o aspecto local da assembleia tem a ver
com o funcionamento prático dos Cristãos em uma cidade ou localidade (Mt 18:18;
At 11:22, 13:1; Rm 16:1, 5; 1 Co 1:2; Cl 4:15-16 etc.). Ele abrange todos os
verdadeiros crentes em uma localidade, mas pode não envolver de forma prática
todos os que vivem naquela localidade. A razão disso é que alguns naquela
localidade podem não estar envolvidos com a reunião na prática, seja por
ignorância, seja por desobediência. Todavia eles talvez pertençam a algum grupo
reconhecido de Cristãos na cidade que não estejam adequadamente congregados no
terreno da assembleia conforme esta é encontrada na Escritura. Para se
distinguir o aspecto universal da assembleia de seu aspecto local basta
observar o contexto da passagem.
Enquanto todos pareçam
concordar sobre o que seja o aspecto universal da assembleia, muitos se mostram
confusos quanto ao seu aspecto local. Eles acham que o aspecto local da
assembleia seja o conjunto de todos os crentes em uma cidade ou localidade
em particular, inclusive aqueles que estão congregados ao Nome do Senhor (se
existir uma reunião assim naquela localidade) e os que estão nas diferentes
denominações Cristãs. Consequentemente, acham que não devemos nos referir aos
santos reunidos ao Nome do Senhor como a assembleia em determinada localidade,
pois nem todos os Cristãos dessa localidade estariam nessa reunião. Todavia,
quando comparamos tal ideia com as Escrituras, encontramos que ela infelizmente
não procede e precisa ser corrigida.
A primeira referência à
assembleia local na Palavra de Deus está em Mateus 18:15-20. Conforme já vimos,
quando existisse a necessidade de resolver problemas que porventura surgissem
entre os santos estes deveriam dizer à assembleia (“dize-o à igreja” – Mt
18:17). Após falar da autoridade que foi delegada à assembleia, o Senhor seguiu
definindo o que é a assembleia, ao dizer: “Porque, onde estiverem dois ou
três reunidos em Meu nome, aí estou Eu no meio deles”. Portanto, está muito
claro que nenhum outro além do Senhor é Quem nos diz que a assembleia local é
formada pelos santos reunidos ao Seu Nome. A sabedoria do Senhor em mencionar o
número mínimo de santos (dois ou três) que poderiam compor uma assembleia local
é claramente vista Prevendo a grande ruína que viria sobre o testemunho Cristão,
Ele sabia que as condições seriam de uma fraqueza tal que talvez restassem
apenas dois ou três reunidos assim em uma localidade. E ainda que só existissem
dois ou três, mesmo assim seria como “a igreja” ou assembleia.
Quando vemos as várias
referências à assembleia local feitas na Palavra de Deus aprendemos que ela é
algo que visivelmente se reúne e funciona na prática em uma cidade ou
localidade (1 Co 11:18). Aprendemos que ela está reunida para adoração e
ministério etc. (1 Co 11:20-26, 14:3-5), e que nela as irmãs devem permanecer
caladas (1 Co 14:34-35). Mais do que isso, o apóstolo Paulo falou várias vezes
da assembleia como algo que as pessoas poderiam entrar e sair. Ele também disse
que, pessoalmente, nem sempre estava na assembleia! (1 Co 14: 18-19) E que até
os incrédulos poderiam entrar nela! (1 Co 14: 23-24) Além disso, o apóstolo
João falou da assembleia local como algo da qual uma pessoa poderia ser
expulsa! (3 Jo 10) Isso mostra claramente que a assembleia local é algo mais do
que algum conceito abstrato de todos os Cristãos em uma cidade em particular.
Agora, se fosse correta
a ideia de que a assembleia local não é nada mais do que o conjunto de todos os
Cristãos em uma cidade, o apóstolo João não poderia tê-la chamado corretamente de
“a igreja” ou assembleia quando certas pessoas, conforme ele mencionou, já
tinham sido expulsas dela (3 Jo 10). Também vemos que Paulo se dirigiu aos
santos em Corinto como “a igreja” ou assembleia naquela cidade (1 Co
1:2), todavia mais adiante na epístola ele admitiu o fato de que talvez
existissem outros Cristãos na cidade (os “indoutos” ou “símplices” – JND) que não estavam entre eles,
que poderiam vir às suas reuniões para assisti-las (1 Co 14:16, 23-24 –
conforme a tradução de J. N. Darby, “aquele que ocupa o lugar do Cristão simples”).
Se existiam Cristãos assim na cidade de Corinto, então fica claro que Paulo não
partilhava da ideia de que todos precisassem estar presentes para que ela fosse
chamada de “a igreja” ou assembleia em Corinto. Mais uma vez, na segunda
epístola de Paulo aos Coríntios, ele se dirigiu aos santos ali como “a
igreja” ou assembleia em Corinto (2 Co 1:1), apesar de existir pelo menos
um deles que não estava, na prática, entre os santos, por ter sido excomungado
(1 Co 5:12-13). O ponto é que aqueles a quem Paulo dirigia sua epístola não
formavam o conjunto de todos os Cristãos em Corinto, e ainda assim ele os
chamou de “igreja” ou assembleia.
Quão diferente isso é
do aspecto universal da assembleia. Se alguém tentasse aplicar as referências
mencionadas aqui à assembleia em seu sentido universal, acabaria tirando toda
sorte de conclusões errôneas. E ficaríamos igualmente confusos se tentássemos
aplicar estas referências à definição incompleta de assembleia como se fosse
meramente o conjunto de todos os Cristãos em uma cidade ou localidade. Por
exemplo, como alguém poderia ser lançado fora do conjunto de todos os Cristãos
em uma localidade? Eles teriam que literalmente expulsá-lo da cidade ou
localidade onde vivessem! Ou como poderia um incrédulo entrar no conjunto de
todos os Cristãos em uma cidade e ainda assim continuar incrédulo? Se ele
entrasse na assembleia nesse sentido, ele teria de ser um crente. Ou, como
poderíamos entender o comando feito por Paulo às irmãs para que ficassem em silêncio?
Teriam elas de ficar em silêncio em qualquer lugar em que estivessem na cidade?
Ou como as instruções dadas pelo Senhor para resolver as disputas entre os
santos poderiam ser resolvidas? Ele disse: “dizei-o à igreja” ou assembleia.
A quem ou aonde eles iriam levar suas dificuldades? Seria quase impossível ir a
todos os Cristãos naquela cidade. Com certeza podemos deduzir destas poucas
referências que existe uma falha na ideia que alguns têm do que seja a
assembleia local.
Concluímos, portanto,
que a assembleia local abrange todos os verdadeiros crentes em uma localidade, mas
pode não conter na prática todos os que estão naquela localidade. Enquanto
que a maioria em uma determinada localidade não está congregada ao nome do
Senhor, aqueles que estão neste terreno e se comportam na prática e moral como
a assembleia naquela cidade ou localidade, são reconhecidos por Deus como tal
pela presença de Cristo em seu meio.
Alguém poderia indagar:
E o que dizer da cidade ou localidade onde não existam Cristãos congregados de
forma bíblica sobre o terreno da assembleia, mas onde mesmo assim existam Cristãos?
Nesse caso, mesmo que existam Cristãos reunindo em suas denominações naquela
localidade, eles não estão congregados sobre o terreno da verdade da
assembleia. Assim eles não têm uma posição administrativa reconhecida por Deus,
conforme encontramos em Mateus 18:18. Poderíamos dizer que os Cristãos nessa
localidade fazem parte do aspecto universal da assembleia, mas que não existe
ali uma assembleia local que seja reconhecida por Deus. William Kelly disse: “Onde
existissem apenas três congregados sobre os princípios divinos [isto é, sobre o
terreno da Igreja], aquilo seria, se posso dizer assim, igreja, quando não a
igreja. Se existissem três mil verdadeiros santos congregados, mas não
sobre os princípios divinos, eles não seriam a igreja”.[1] J.
N. Darby disse: “Fica claro que os Cristãos de uma determinada localidade,
quando estivessem congregados, eram verdadeiramente a assembleia naquela
localidade; todavia aquela não era meramente a assembleia que reconhecia a
Deus, mas a que era reconhecida por Ele, e a única que desfrutava dos
privilégios que Ele poderia conceder a ela por ser a Sua assembleia.”[2]
Ele também disse: “A assembleia de Deus é identificada por possuir a
verdade. Uma assembleia que não tenha a verdade como condição de sua existência
não é a assembleia de Deus.”[3]
Ele também disse que as diferentes reuniões de Cristãos são uma
assembleia, mas não uma assembleia de Deus, reconhecida como tal por Ele
próprio.
Talvez uma ilustração
nos ajude a entender esse ponto. Quando o Senado do governo dos Estados Unidos
se reúne em Washington para aprovar alguma legislação pendente, não é
necessário que todos os 100 senadores estejam presentes antes que possam ser
chamados para atuar como Senado. Enquanto houver um quórum (algo como 51%), os
senadores reunidos em Washington são considerados o Senado. Eles têm tanta
autoridade para agir como Senado como se todos os 100 senadores estivessem
presentes. Sua autoridade para agir como tal não vem de todos estarem
presentes, mas pelos senadores que estão presentes, reunidos como o Senado conforme
regem as leis do Congresso. Aqueles no Senado reconheceriam que os outros que
não estavam presentes eram senadores iguais a eles, e certamente sentiriam
falta daqueles que não estavam lá e iriam carecer da contribuição deles. No
entanto, isso não negaria o fato de que a autoridade para atuar como Senado era
investida apenas nas pessoas que se reuniam no Senado, desde que houvesse quórum.
É exatamente a mesma
coisa com a assembleia local. Mesmo que existam muitos Cristãos em uma
localidade que não estejam congregados ao Nome do Senhor sobre o fundamento da
verdade, isso não altera o fato de que aqueles que estão sobre esse terreno são
moralmente a assembleia naquela localidade e são reconhecidos por Deus como
tal. O quórum, por assim dizer, é o mínimo divino de dois ou três divinamente
congregados (Mt 18:20).
Tendo estabelecido este
ponto, nos apressamos em dizer que certamente está totalmente fora do caráter
do Cristianismo que aqueles que estejam verdadeiramente reunidos ao Nome do
Senhor se denominem a si mesmos “a assembleia” em determinado lugar.
Quão inadequado seria, em um dia de ruína, para aqueles assim congregados
saírem por aí proclamando que eles são a assembleia em uma determinada
cidade ou localidade, ainda que creiam estar moralmente nesse terreno. J. N.
Darby disse: “Fica claro que se dois ou três estão reunidos, isso é uma
assembleia, e se estiverem biblicamente reunidos, é uma assembleia de Deus; e
se não, o que seria? Se for a única naquela localidade, então é a
assembleia de Deus naquele lugar, ainda que eu tenha objeções em adotar este
título na prática, pois a assembleia de Deus em qualquer localidade
verdadeiramente abrange todos os santos naquele lugar. Existe um perigo real,
para as almas que assumem tal título, perderem de vista a ruína e se
considerarem como se fossem alguma coisa... Mas, se existir uma assim [em uma
localidade], enquanto outra tiver sido estabelecida pela vontade do homem e
independente da primeira, somente a primeira é, moralmente e aos olhos de Deus,
a assembleia de Deus. A outra não, pois foi estabelecida em independência da
unidade do corpo.”[4]
J. N. Darby também disse: “Permita-me dizer que as assembleias dos assim
chamados ‘Irmãos de Plymouth’, longe de se denominarem a si mesmas ‘a
assembleia’ ou ‘a igreja de Deus’ em um determinado lugar, sempre se opuseram
formalmente ao título... A pretensão de ser a igreja de Deus em um determinado
lugar seria uma falsa pretensão”[5].
Todavia, há alguns que
se opõem ativamente a isto, chamando tal posição de sectária. Eles insistem que
a assembleia local são todos os Cristãos em uma cidade – nem mais, nem menos.
Nossa pergunta é: Por que esses querem colocar a definição da assembleia local
da forma mais abstrata possível? Por que defendem tanto essa definição? Parece
que o que está por detrás desse argumento é um esforço em manter a porta aberta
para caminharem pelo caminho largo – para terem comunhão com todos os Cristãos
de sua comunidade. Temos observado que muitos que falam assim também buscam
comunhão com aqueles das igrejas denominacionais em sua comunidade. Parece que
se conseguirem negar a ideia de que Deus possui um centro de reunião na
prática, isso lhes dará a liberdade que tanto almejam de frequentar diferentes
lugares de comunhão. Parece que mantendo as coisas relacionadas à assembleia da
forma mais abstrata possível facilita o atendimento a esse desejo.
Concluímos, portanto,
que existem duas maneiras de se estar na igreja (assembleia). Estamos
nela no sentido universal, por termos sido salvos por fé na obra
consumada de Cristo na cruz e por sermos habitados pelo Espírito Santo. Em
segundo lugar, podemos estar nela no sentido local, por sermos parte de
sua expressão local e por participarmos de suas reuniões para adoração,
ministério e comunhão. Se, por um lado, todos os Cristãos estão na Igreja em
seu sentido universal, nem todos podem estar nela na prática, em seu sentido
local.
[1] N.
do A.: W. Kelly, “Lectures on
Matthew”, pág. 327.
[2] N.
do A.: J. N. Darby, “Collected
Writings”, vol. 1, pág. 260.
[3] N.
do A.: J. N. Darby, “Collected
Writings”, vol. 3, pág. 380.
[4] N.
do A.: “Letters of J. N. Darby”, vol. 1, pág. 424.
[5] J.
N. Darby, “Collected Writings”, vol. 20, págs. 296-297.
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