Os Caminhos de Deus com a Igreja
Quando o assunto é a Igreja,
vemos o Senhor agindo sobre o mesmo princípio. Se acompanharmos a história da Igreja
do modo como ela é apresentada nas sete igrejas do livro de Apocalipse, veremos
o testemunho Cristão numa trajetória descendente. O estado de coisas chega a um
ponto tal que o Senhor já não reconhece a massa da profissão Cristã e passa a
tratar com um testemunho remanescente (Ap 2:24-29). O estado da Igreja
havia atingido um ponto em que não havia mais “nenhum remédio” (2 Cr
36:16). Consequentemente, a partir desse ponto ocorre uma mudança notória nos
caminhos de Deus com a Igreja. Isto é indicado pelo fato de o convite para
ouvir “o que o Espírito diz às igrejas”, vir depois da promessa
ao que vencer, ao invés de vir antes, como tinha sido o padrão até esse ponto. Nas
primeiras três igrejas (Éfeso, Esmirna e Pérgamo) a recompensa ao que vencer
foi apresentada a toda a Igreja, pois o Senhor ainda estava tratando com ela como
um todo. Todos na Igreja que ouvissem e obedecessem receberiam a recompensa do
vencedor. Daí em diante tudo muda. Ao comentar isso, J. N. Darby disse: “O
corpo como um todo é deixado de lado.”[1] A
massa pública da profissão Cristã é tratada como incapaz de ouvir e se
arrepender.[2]
A partir daí o Senhor separa um remanescente, dizendo: “Mas Eu vos digo a
vós, e aos restantes (o remanescente)...”.
Dessa época em diante o Senhor começou a tratar com um remanescente, e deixou a
massa do povo de lado. Nas últimas quatro igrejas o chamado para “quem tem
ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” é dirigido a um
remanescente, pois somente eles irão ouvir e vencer. W. Kelly disse: “Desde
então, o Senhor coloca a promessa [ao vencedor] em primeiro lugar, e isso é
porque é inútil esperar que a Igreja como um todo a receba ... apenas um
remanescente vence, e a promessa é para estes; no que diz respeito aos outros,
está acabado.”[3]
Como consequência disso o Senhor já não espera que a grande massa da profissão Cristã
venha a ouvir e voltar ao ponto do qual se desviou. Qualquer ideia de recuperar
a Igreja como um todo é abandonada, pois ela atingiu um ponto quando mais “nenhum
remédio” havia e não poderia ser consertada.
Se pudéssemos voltar no
tempo para ver o que fez com que a expressão pública da Igreja atingisse o
ponto de “nenhum remédio”, descobriríamos que foi o mesmo que fez com
que o testemunho do Senhor em Israel atingisse esse ponto. À semelhança de
Israel, com a Igreja ocorreu uma sequência de eventos que levou a isso. Da
carta à igreja de Éfeso aprendemos que o “anjo da igreja” (a liderança
responsável) julgou corretamente tudo o que não era adequado ao Senhor. Ali diz
que não podiam “sofrer os maus”. Mas infelizmente não tinham o coração nisso
(Ap 2:2-4). Em Esmirna qualquer avanço na degeneração do testemunho, foi
refreado pelas grandes perseguições que assolaram a Igreja. A severidade das
provas fazia com que eles se voltassem para o Senhor. Mas em Pérgamo, quando
terminaram os tempos de grande perseguição, “o anjo da igreja” começou a
tolerar alguns que seguiam a “doutrina de Balaão”, que é o mundanismo e
a idolatria. O “anjo” não foi responsabilizado por possuir essas
doutrinas, mas o Senhor encontrou falta nele, pois não denunciou o mal como
havia feito “o anjo” em Éfeso.
Em Tiatira uma condição
ainda pior prevaleceu. “O anjo da igreja” permitiu que a mesma má
doutrina e prática, que era mantida por alguns em Pérgamo, fosse ensinada!
(Compare Ap 2:14 com 2:20). Aquilo que começou com alguns seguindo uma má
doutrina terminou em muitos ensinando a má doutrina. Isto mostra que se o tolerar
o mal não for julgado, isso levará a que ele seja propagado. Em Tiatira o
ensino da má doutrina havia se transformado em um sistema de coisas chamado “Jezabel”,
que certamente corresponde ao catolicismo. Na Idade Média esse sistema manteve
tamanho controle tirânico sobre a Igreja como um todo, usando de sua força e
organização, que controlava até mesmo “o anjo”! Aqueles que ocupavam o
lugar de responsabilidade falharam em lidar com o mal quando podiam ter feito e
agora esse mal havia se transformado em um monstro que os controlava! (Veja
Atos 27:14-15. O “euro-aquilão” – um grande vento Mediterrâneo – arrebatou o
navio (a nau), e os marinheiros não podiam fazer nada, senão “deixando ela ir” (JND). A
figura de “Jezabel” pode muito bem ser usada aqui, pois aquela mulher
não apenas introduziu formalmente a idolatria em Israel, como também controlava
e manipulava seu marido, o rei Acabe.
Sendo assim o estado
público da Igreja, onde não restou poder algum para tratar com o mal, o Senhor
separou um remanescente e deixou de lado a massa como um todo. Ele não colocou
sobre o remanescente a “carga” de consertar a confusão, na tentativa de
fazer a Igreja voltar ao que tinha sido no passado. Ao invés disso, Ele
levou-os a se concentrarem na Sua vinda, dizendo, “o que tendes, retende-o
até que Eu venha” (Ap 2:25).
Trabalhando com um
testemunho remanescente desde aquela época, aprouve ao Senhor recuperar a
verdade que tinha sido perdida ao longo dos séculos anteriores por causa do
descuido da Igreja. Todavia, não pareceu bem a Ele recuperar toda a verdade de
uma só vez. O remanescente citado em Apocalipse 2:24-29 é formado pelos
Valdenses, Albigenses e outros que, à semelhança deles, se separaram do mal de “Jezabel”
nos tempos medievais. A eles foi dito que retivessem aquela porção de verdade
que eles tinham. Algum tempo depois, direcionando-os à Reforma, o Senhor deu um
pouco mais de verdade, tais como a supremacia da Bíblia e a fé em Cristo apenas
para a salvação.
Mas até mesmo aquele
movimento do Espírito foi barrado pelos que se voltaram a determinados governos
em busca de ajuda contra a igreja de Roma. Isso foi essencialmente buscar ajuda
no homem carnal ao invés de confiar no Senhor (Jr 17:5; Sl 118:8-9; Is 31:1). A
consequência foi um estado de morte espiritual, como é mostrado na igreja em
Sardes (Ap 3:1-6 – “tens nome de que vives, e estás morto”). Foi apenas
no início dos anos 1800 que o Senhor proveu uma completa recuperação da “fé
que uma vez foi dada aos santos” (Jd 3). Nessa ocasião Deus estabeleceu um
testemunho corporativo da verdade do um só corpo. Antes disso o remanescente
havia sido formado por indivíduos que fielmente buscavam em prosseguir separados
da corrupção da igreja de Roma. No século 19 a doutrina de Paulo (2 Tm 3:10), a
verdade dispensacional e a verdade da assembleia (Mt 18:20) foram revividas na
prática, de modo que aqueles que o Senhor congregou ao Seu nome podiam agir
sobre a verdade do “um só corpo”. Isto não significa que os santos
congregados ao nome do Senhor sejam exatamente um remanescente, pois todos os
verdadeiros crentes, em meio à massa de uma profissão Cristã sem vida da Cristandade,
formam o remanescente. Mas os congregados ao nome do Senhor ocupam, como um
testemunho, uma posição eclesiástica de remanescente em meio à confusão
existente na Igreja. Esse reavivamento é mostrado no que o Senhor diz à igreja
em Filadélfia (Ap 3:7-13). Hoje vivemos uma época quando cada um faz aquilo que
é correto aos seus próprios olhos, e a maioria é complacente com sua má condição.
Podemos ver isso representando na igreja em Laodiceia (Ap 3:14-22).
Também não devemos
achar que o Senhor tenha declarado “Lo-ami” sobre o testemunho Cristão
atual – Ele irá fazer isso algum dia quando, por assim dizer, vomitar a coisa
toda de Sua boca em Sua vinda (Ap 3:16). Mas o testemunho Cristão atingiu um
ponto irremediável de ruína, e por isso exigiu uma mudança nos caminhos de Deus
para com ele. Como Deus abandonou a busca pela restauração da condição
pública da Igreja e passou a tratar com um testemunho remanescente, Ele não irá
entregar o Seu poder ao testemunho Cristão atual, como fez nos primeiros dias
da Igreja. Isso não seria condizente com o caráter do estado arruinado em que
vivemos hoje. Tampouco Ele necessariamente irá reunir grandes multidões ao Seu
nome, que é o centro divino de reunião para os Cristãos (Mt 18:20), para levar
adiante esse testemunho remanescente.
Assim como foi com
Israel, a fim de manter um testemunho remanescente hoje, voltado para a verdade
do um só corpo, o Senhor não precisa ter cada Cristão do mundo congregado ao
Seu Nome, ainda que este fosse o Seu desejo para eles. O próprio significado
da palavra remanescente implica que nem todos estão ali. Em Sua divina
prerrogativa e graça Ele está tomando um aqui, outro ali, e os reunindo ao Seu
Nome, a fim de que esse testemunho remanescente possa seguir adiante. A
manutenção desse testemunho é uma obra soberana. É o que vemos no discurso do
Senhor a Filadélfia quando Ele diz: “Isto diz o que é Santo, O que é
verdadeiro, O que tem a chave de Davi; O que abre, e ninguém fecha; e fecha, e
ninguém abre” (Ap 3:7). Nenhum homem ou demônio pode impedir sua continuidade,
embora possa parecer que esse testemunho seja levado adiante em meio a muita
fraqueza e debilidade, por causa do estado daqueles que estão associados a ele.
Por mais fraco que seja um testemunho assim, o Senhor não precisa de nenhum dos
que Ele tem congregado. Eles ouvem “o que o Espírito diz às igrejas” por
ter sido Ele quem lhes abriu os ouvidos (Pv 20:12). Se estivermos congregados
assim, nada teremos de que nos gloriar, pois foi somente a Sua graça que nos
garantiu tal privilégio. Louvado seja o Seu Nome! Se aqueles que Ele tem
congregado ao Seu Nome forem um testemunho, eles nada mais serão do que um
testemunho do fato de que existe uma irremediável ruína no testemunho Cristão.
Certamente isto não é algo de que alguém irá querer se orgulhar.
Portanto, quando o
assunto é a prática da verdade do um só corpo em nossos dias, devemos entender
que isto só pode ser praticado em um caráter remanescente. Pode ser útil aqui
uma ilustração que costuma ser usada para explicar isto. Suponha que os pais de
uma grande família precisem viajar a um país distante e ficarem ali por algum
tempo antes de voltarem para casa. Antes de partirem, o pai dá instruções aos
filhos dizendo que, apesar das muitas tarefas que devem cumprir durante o dia,
eles deverão se sentar juntos à mesa do jantar, como quando seus pais estavam
com eles, de modo a manter a família junta, como uma unidade, durante a
ausência deles. Mas pouco tempo após a partida, alguns se encontram muito
ocupados, outros já deixaram de se preocupar com esse pedido etc. Depois de um
tempo nenhum dos filhos está fazendo o que seus pais pediram. Mas, algum tempo
depois, dois ou três deles se lembram do pedido dos pais e procuram colocá-lo
em prática durante o jantar. Embora os outros membros da família não se juntem
a eles, estes continuam buscando cumprir o pedido de seus pais. Ao fazerem
isso, eles não querem dizer que apenas eles sejam a família completa,
pois reconhecem que são apenas parte da família. De modo similar, nestes
últimos dias existe um testemunho remanescente da verdade do um só corpo.
Aqueles que estão identificados com esse testemunho não pretendem ser o “um só
corpo”, mas apenas procuram estar congregados sobre este terreno. Eles não
buscam ser alguma coisa, mas simplesmente procuram praticar a verdade de Deus no
que diz respeito à assembleia.
[1] N. do A.: J. N. Darby, “Collected Writtings”, vol. 5,
pág. 381.
[2] N.
do A.: W. Scott, “Exposition of the Revelation of Jesus Christ”, pág.
90.
[3] N. do A.: W. Kelly, “Revelation
Expounded”, pág. 57.
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